segunda-feira, 8 de março de 2010

EU TE CONHEÇO?


(Extraído do meu livro "Contos & Casos"...)
EU TE CONHEÇO?
Numas férias forenses fui convocado para auxiliar numa grande Comarca do Estado. Chegando lá não encontrei um gabinete disponível; todos os juízes continuavam trabalhando. Fui até o Salão do Júri, que só costumava ser aberto para as sessões semestrais. Era uma grande sala, como móveis antigos, paredes revestidas de madeira escura, cortinas pesadas, tudo dando ao local um aspecto mais lúgubre do que solene. Acomodei-me na cadeira da presidência, no alto de um tablado, com visão para todo o salão. Bem à minha frente, lá no início do corredor, antes das fileiras de cadeiras, estava a porta de entrada, que deixei aberta para clarear melhor o ambiente.
Sobre a mesa havia pesadas pilhas de processos aguardando meus despachos, com um pequeno espaço entre elas para que eu pudesse vislumbrar quem lá chegasse. Já estava ali há várias horas, absorto na leitura dos autos e não percebi que alguém se aproximou da mesa. Só “acordei” quando ouvi dizer:
- Doutor, com licença, Vossa Excelência aceita um cafezinho? Foi feito agora!
Levantei a cabeça e mal pude ver quem era. A luz que vinha da entrada fazia sombra no seu rosto. Só poderia ter baixa estatura, porque mal dava para ver a metade superior do seu corpo. Ele me estendeu a xícara e ficou com a bandeja na mão, me aguardando. Enquanto eu sorvia, lentamente, a bebida, pude perceber que o indivíduo mantinha os olhos fixos em mim, com uma expressão que, de momento, não consegui definir.
Ao estender o braço para receber de volta a xícara vazia, o homem perguntou:
- Doutor, o senhor não está me reconhecendo?
Confesso que sou mau fisionomista e também costumo me esquecer, facilmente, dos nomes. Olhei bem para ele e respondi de modo reticente:
- Me desculpe, mas não estou me lembrando...
Ele falou de novo, com a voz já um pouco alterada:
- Doutor, o senhor não se lembra daquele homem que matou a mulher e a sogra e o senhor o condenou a 30 anos de cadeia
Na mesma hora o caso me veio à lembrança, porque foi a maior pena que eu já tinha aplicado num julgamento popular. E também me lembrei que o réu dera muito trabalho, querendo avançar sobre mim ao final do julgamento. Mesmo algemado e imobilizado por vários policiais, saiu arrastado e gritando vingança, jurando que me mataria quando saísse da prisão. Era, de fato, um homem bem perigoso, ou, como costumamos dizer nos meios forenses, “de alta periculosidade”.
Havia passado muito tempo desde aquele julgamento; talvez uns 10 anos. Por isso já tinha me esquecido da ameaça. Agora com o homem à minha frente, passei a temer, realmente, pela minha vida. Não estava sequer armado para uma eventual defesa. E o café que tomei, não estaria envenenado? Se estivesse, haveria tempo para socorro? Dei um jeitinho de afundar-me na cadeira, esperando que as pilhas de processos me servissem de alguma proteção. Não sei se deixei transparecer ao homem o meu temor. O fato é que ele mesmo me trouxe de novo a tranqüilidade, dizendo-me:
- Pois é, Excelência, naquele tempo eu era um homem ruim; sei que não valia nada e matava qualquer um que me contrariasse. É... A cadeia me ensinou muito! Hoje sou “Irmão em Cristo”! Estou aqui graças ao meu bom comportamento. Ganhei prisão-albergue e estou ajudando o pessoal da copa.
Livre da tensão tive um ímpeto de coragem: levantei-me bem rápido, abri os braços e gritei:
- Aleluia, irmão!
Em seguida, corri até ele, abracei-o fortemente e disse em tom amoroso:
- Que Deus esteja convosco, meu irmão em Cristo!
Percebi que seus olhos marejaram de emoção.
O homem curvou-se, respeitosamente, e foi embora. Sentei-me novamente, respirei fundo, esperei alguns minutos, peguei minha maleta “007” e “dei no pé”, dizendo para mim mesmo: Por hoje chega de sustos. Vai daí que ele tenha uma recaída... Por via das dúvidas, expediente encerrado!